O OUTRO LADO DO MUNDO
A solidão do vento
entra pelas frestas da minha casa
irrompe frio, gelado na procura
de um aconchego
Roça as minhas pernas
e um calafrio percorre o meu corpo
Sinto-me invadida por um abraço gelado...
O vento
no meu lar encontra
uma nesga de mim
e na minha solidão
encontramo-nos...
Como o vento
encontro neste pedaço de luz
almas solitárias
que percorrem distâncias
na busca de um aconchego
E na distância imposta por mim
leio frases soltas
comentários solitários
e pressinto lamentos
e numa lassidão total
tento adivinhar rostos escondidos
do outro lado do mundo...
http://www.youtube.com/watch?v=qYKtYMST8wY
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ASSIM...
Porto-Parque da Cidade - Foto de António S. Pereira
(Retirado do site Olhares-Fotografia On Line)
Como um fruto que mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro
Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro
in "Livro Sexto"
Sophia de Mello Breyner Andresen
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A FONTE
A fonte que jorra de mim esvaisse
e um pequeno fio desliza
percorrendo os espaços vazios
lentamente sem vivacidade
acariciando monotonamente o nada
funestas e sombrias
as sombras assombram-me...
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NUM MUNDO
Como se vivesse-mos juntos
mas em mundos diferentes
como se eu num mundo físico, visível
e tu num mundo paralelamente não visível
num mundo não físico
desprendeste-te do corpo que carregavas
mas a alma,
o espírito
o teu sentir
o teu saber
o teu sonhar
permanece em mim
tão intensamente
que por vezes é quase possível sentir-te fisicamente
naquele beijo repenicado
na face das tuas minhas crianças
num abraço apertado
carregado de ternura
que um ser pode transmitir a outro ser
a distância física que existe entre nós
que se reflecte nesta interminável ausência
não nos separa...
o amor que sinto por ti
continua vivo, teimosamente vivo
como se nenhuma ausência possível o destruísse
e a distância
e a ausência
é a tua presença
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TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Poesia de Álvaro de Campos
Álvaro de Campos, um dos hererónimos de Fernando Pessoa.
"A poesia de Pessoa é a interminavel edificação de uma Pátria-Nau de Linguagem que realize as virtualidades de uma personaidade que é vários nomes no nome-viagem chamado Fernando Pessoa. "Para que é preciso um nome?", repete insistentemente a sua poesia. Nós somos linguagem, somos "daquilo de que os sonhos são feitos".
In Fernando Pessoa - Poemas Escolhidos (Selecção e apresentação de Jorge Fazenda Lourenço) - Editora Ulisseia, 1985
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ESPELHO
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FERNANDO PESSOA
I
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
II
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...
III
A Grande Esfinge do Egito sonha pôr este papel dentro...
Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...
Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...
Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...
Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...
IV
Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...
As paredes estão na Andaluzia...
Há danças sensuais no brilho fixo da luz...
De repente todo o espaço pára...,
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...
V
Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje..
VI
O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
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PERDIDA NO TEMPO
Fechada em mimVive uma jovem princesaQue perdida no tempoVive o tempo perdidoNum castelo edificadoCom risos maléficosE lanças mortaisDispara palavrasEm torno do silêncio
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AMARRAS
Gostava de poder libertar as amarras que sufocam
os meus pensamentos,
as minhas opções,
as minhas atitudes
O que penso não proclamo
com receio de me julgarem... ingénua
opto sempre a pensar nos outros e pouco em mim
as atitudes são severamente pensadas
para não serem crucificadas
Assim é como se vivessem
em mim várias pessoas
Assim é como se no meu palco
representassem vários actores
No entanto, consigo coordenar
quase todos os momentos e
se num sou a mãe carinhosa
no outro a dona de casa empenhada
a anfitriã descontraída
a esposa esforçada
onde fico "eu"
ou o pouco que resta de mim
aquela cujos pensamentos não divulga
as opções não concretiza
e as atitudes afoga...